Superação da versão “sacerdotalizada” do cristianismo

Jorge Costadoat
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Por: Jorge Costadoat*

25 de agosto de 2024

Em resumo: o ‘homem sagrado’ ainda é o problema. Deve-se ter em mente que a nossa é uma versão “sacerdotalizada” da Igreja católica. Ela não tem sido e não precisa continuar sendo a expressão da Igreja de Cristo, pois parece estar esgotada em sua capacidade de transmitir o cristianismo. 

Na fisionomia de hoje da Igreja da América Latina e do Caribe, a pertença eclesial é realizada por meio da pessoa sacra do sacerdote. Em nosso meio, os principais sacramentos são realizados pelos presbíteros. Também acontece que as instituições que regem oficialmente a convivência eclesial são consideradas, em certo sentido, divinas e irreformáveis.

A Igreja da América Latina e do Caribe quer avançar na sinodalidade, mas enquanto a ideia do padre ou do presbítero como “o homem sagrado” não for eliminada na Igreja, as relações intra-eclesiais continuarão em curto-circuito.

Essas são as expressões mais preocupantes dessa situação:

1. O ‘homem sagrado’ é um problema ad intra da Igreja

  • O ‘homem sagrado’ estabelece relações não saudáveis: o padre tem tanto prestígio que inibe a inteligência e a liberdade das pessoas. Não é saudável que as relações entre o ministro e os leigos sejam apenas assimétricas (elas também deveriam ser simétricas, entre adultos).
  • O ‘homem sagrado’ infantiliza as pessoas e a própria Igreja, que é liderada por pastores que tratam aos cristãos e às cristãs como ovelhas (um animal pouco inteligente).
  • A investidura mágica dos presbíteros seduz e incentiva o abuso sexual, de consciência e de poder, como denunciam os relatórios da Austrália e da França sobre esse assunto.
  • O ‘homem sagrado’ faz com que a Igreja ou as comunidades girem em torno do que somente ele pode fazer (sacramentos). Ele não gera comunidades, mas ‘públicos’, ‘clientes’ ou ‘fiéis’ (pessoas que são ‘fidelizadas’).
  • O sacerdote incensa a si mesmo e aos outros.

2. O ‘homem sagrado’ é um problema ad extra

  • Frustra a missão evangelizadora da Igreja: Jesus não reivindicou um reconhecimento de ‘sacralidade’, mas invocou a união com o Pai como base para a vinda do reino; Jesus não teve a pretensão de ser ‘sagrado’, mas, em vez disso, queria ser compassivo.
  • Jesus foi vítima de uma instituição “auto-sacralizada”. É por isso que o catolicismo sacerdotalizado que temos é um anti-testemunho do Evangelho.

Para crescer em sinodalidade, é necessária uma reforma das estruturas e uma conversão do coração. Ambas precisam uma da outra. Aqui nos concentramos em uma única questão: a formação do clero (religioso e diocesano).

Deve-se observar que no documento Síntesis narrativa da Assembleia eclesial latino-americana y caribenha, foi declarado: “banir a clericalização. Mudar a visão e a missão dos seminários, porque é aí que se forja o clericalismo” (2021, p. 135). E, em outro lugar: “o clericalismo começa a ser formado assim que os candidatos ao sacramento da Ordem entram no seminário” (p. 107). 

Na Igreja do continente, percebemos que a doutrina do Concílio Vaticano foi recebida de um modo incompleto. É ainda mais preocupante que, em muitos lugares, esse ensinamento tenha sido simplesmente esquecido. Essa falta é evidente nas Normas para a formação de seminaristas (rationes).

Como antecedente para superar o problema, devemos lembrar que o Concílio de Trento, no século XVI, respondeu a uma profunda crise eclesial causada por abusos de diferentes naturezas cometidos por bispos e sacerdotes. Para isso, criou seminários nos quais separou os seminaristas das outras pessoas; enfatizou o desenvolvimento de virtudes nos jovens; sublinhou que a Eucaristia é um sacrifício e não uma ceia; fez com que a vida da Igreja passasse pelas ações realizadas pelo sacerdote (os sacramentos). 

Se Trento acentuou os sacramentos, o Vaticano II (século XX) enfatizou a pregação do Evangelho. O Concílio buscou um diálogo com a Reforma Protestante (que provocou a resposta tridentina) e com a modernidade (que ameaçava encurralar a Igreja no fideísmo). Assim, ele exaltou a importância da Palavra (Dei Verbum); exigiu que os sacerdotes se dedicassem prioritariamente à sua proclamação (Presbyterorum  ordinis); ele queria que as Escrituras fossem “a alma da teologia” a ser estudada pelos seminaristas (Optatam  totius); destacou a prioridade do sacerdócio comum dos fiéis e subordinou o sacerdócio ministerial a ele, e promoveu a santidade de todos os homens e mulheres batizados, querendo acabar com os “estados de perfeição” (status de superioridade de clérigos e religiosos/as) (Lumen gentium). Além disso, o Vaticano II colocou a Igreja em diálogo com as culturas e os tempos (Gaudium et spes).

Entretanto, o Concílio não harmonizou as inovações teológicas relativas aos presbíteros e sua formação. Nos documentos, as inovações viveram junto com aquelas introduzidas por Trento. O Concílio tolerou a contradição. O mais difícil foi não acabar com a ideia da superioridade dos clérigos em virtude de sua ordenação sacerdotal

Após alguns anos de experimentos e uma crise de identidade sacerdotal, João Paulo II bateu na mesa e exigiu um recuo. Em Pastores dabo vobis (1992) – o documento que reinterpretou o Optatam totius o Papa declarou: “chegou o momento de falar corajosamente da vida sacerdotal como de valor inestimável e como uma forma esplêndida e privilegiada de vida cristã” (n° 39). De acordo com Gilles Routhier, desde então “por deslocamentos sucessivos, o presbiterado passou a ser considerado, de novo é cada vez mais, a partir da categoria sacerdotal, como um estado de perfeição. Após cinquenta anos, a perspectiva indicada pelo Vaticano foi praticamente revertida” (2014).

Recomendações

  • Há necessidade de uma harmonização teológica entre os documentos que se referem à identidade e à missão dos presbíteros, pois eles contêm elementos do antigo regime que facilitam o retorno ao seminário tridentino que protege os formandos do mundo e depois os envia a ele como pessoas sagradas e superiores às outras.
  • É preciso que o regime de formação não separe os seminaristas das pessoas comuns, mas sim expô-los a relações afetivas, espirituais, intelectuais e pastorais que, de acordo com o paradigma da Encarnação, os tornem mais humanos.
  • A formação dos futuros ministros deve ser responsabilidade de todo o Povo de Deus. Os e as católicas devem ter uma palavra decisiva na aceitação de pessoas na formação e na concessão do sacramento da Ordem, bem como no estabelecimento dos critérios que devem reger esse longo estágio.

* Jesuíta chileno. Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Foi diretor do Centro Teológico Manuel Larraín (2004-2016). Foi coordenador da Comissão Teológica da Companhia de Jesus na América Latina em dois períodos (2000-2004 e 2006-2013). Atualmente é pesquisador adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Chile.

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