Raízes guaranis da Sinodalidade

Margot Bremer
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Por: Margot Bremer

11 de julho de 2024

Um diálogo imaginário entre um paí[1] guarani e um paí católico.

— Paí Católico. A Igreja católica neste momento histórico está sonhando em voltar a ser sinodal. Os povos guaranis[2] também têm algo semelhante?

Paí Guaraní. Se você quer dizer com sinodal “caminhar juntos”, posso dizer que sim. A caminhada (oguata) é muito característica de nossa identidade. Embora vivamos em uma casa e cultivemos uma chacra, em nossa consciência vivemos como uma comunidade, como um povo em caminho, buscando juntos o mesmo destino, a Terra sem Mal.

Esse estado de itinerância marca profundamente nossa espiritualidade, pois percebemos, enquanto caminhamos, a proximidade e o acompanhamento de nosso Deus e Pai Criador Ñamandú. Assim como vocês, nós, os guaranis, também temos um sonho, uma utopia de convivência harmoniosa entre todos, inclusive com a natureza.

O sentido de nossa vida é caminharmos juntos em direção à Terra Sem Mal, um lugar onde podemos ser e viver plenamente aquello que somos (tekoha). Essa é a nossa autenticidade. Tentamos vivê-la o máximo possível já como uma pequena comunidade em nosso território, em harmonia com a natureza. Nossa missão é criar, desenvolver e cuidar desse tekoha e recriá-lo constantemente, tecendo bons relacionamentos para uma boa convivência.

Boa convivência

— Paí Católico. E como vocês consegue uma boa convivência no dia a dia?

Paí Guaraní. Para vivermos bem juntos, devemos praticar a reciprocidade sempre que a realidade cotidiana nos oferecer uma oportunidade. Esse é o caminho para nos tornarmos mais autênticos e justos, e a cada dia seremos cada vez mais o que carregamos dentro de nós desde o início de nossa existência. Acontece que as situações de necessidade e abundância podem mudar em cada um de nós a qualquer momento. Hoje eu posso dar, amanhã serei o necessitado e vice-versa. Para manter o norte em nosso caminhar juntos, aproveitamos essas situações oscilantes da vida para reforzar nosso senso comunitário.

A reciprocidade renova e reacende nosso senso de pertença e solidariedade. Um dá ao outro sem a intenção de que o outro retribua. Em vez disso, a doação é feita com o desejo de que ele faça o mesmo quando encontrar outro em uma situação semelhante; e isso em todos os níveis da vida. A reciprocidade é a base do sistema de nossa boa convivência.

Cosmovisão

— Paí Católico. Como especialistas em relacionamentos, como vocês relacionam sua cosmovisão com a prática cotidiana?

Paí Guaraní. Temos uma teologia baseada na vida[3] , que se fundamenta no conhecimento de que toda a biodiversidade de seres vivos que estão em nosso território e em toda a Terra, está conectada em uma inter-relação.

Nosso destino é vivermos juntos, uns com os outros, e cada um à sua maneira. Esse é o nosso sonho de uma Terra sem Mal. O ponto de partida dessa teologia é o núcleo familiar, que é ampliado para a comunidade, para o povo e para o cosmos. Interiormente, estendemos nosso olhar para além de nosso ambiente limitado e interpretamos a visão de nosso pequeno recinto como parte de uma visão universal.

Pois a Terra sem Mal é o nome de uma visão universal, mas cada tekoha deve ser o lugar onde colocamos em prática concreta essa utopia de coexistência. O próprio Papa afirma na Laudato si’ que a vida em sua integridade não é a soma de suas partes. Pensamos que a verdadeira vida é uma grande interdependência orgânica entre todas as espécies vivas. É um sagrado tecido de vida.

Convivência

— Paí Católico. Como os guaranis abordam sua organização de convivência?

Paí Guaraní. Nós, o povo guarani, com outra visão do mundo e da vida, também temos outra visão coerente do sistema de convivência. Nossa visão guarani é socioambiental. Enquanto a sua, até agora, tem sido mais antropocêntrica.

Foi a própria natureza que nos ensinou que a vida abrange uma imensa biodiversidade, inúmeros tipos e espécies que estão inter-relacionados e tendem a se complementar.

Para nosso povo guarani, a natureza é um verdadeiro livro de revelação sobre o mistério da vida. Para nós, a vida é sagrada em sua delicada inter-relação, que deve ser respeitada e cuidada por meio da reciprocidade. Ela está sempre aberta aos outros, o que também oferece a possibilidade de uma renovação da convivência.

O próprio Papa de vocês já havia dito que “o cuidado mútuo dessas inter-relações nasce de uma sociedade inclusiva, baseada no diálogo”[4]. Para nós, a vida engloba a convivência em um relacionamento triplo: entre os seres humanos, com o cosmos e com Deus Ñamandú. Essa tripla inter-relação marca e define nossa sabedoria, nossa economia, todos nossos conhecimentos sobre as leis da vida, a influência dos astros e também a organização de nossa convivência.

A assembleia

— Paí Católico. O que significa a assembleia na convivência do povo guarani?

Paí Guaraní. A maneira guarani de viver em conjunto é marcada pela assembleia, na qual decidimos coletivamente a direção de nossa caminhada, já que, em meio aos altos e baixos e às mudanças da história, perdemos facilmente o rumo e, às vezes, até o destino.

Portanto, para nós a assembleia tem uma grande importância, pois precisamos parar em nossa caminhda, nos encontrar e nos reunir em uma rede de comunidades para analisar, reorientar, renovar, ressignificar as escolhas passadas e retomar juntos o curso em direção ao futuro. Discernimos as dificuldades e buscamos juntos respostas para os problemas.

A celebração de uma assembleia é um ato religioso e sociopolítico. No início, o xamã canta solenemente um de nossos mitos de criação para nos lembrar do projeto de vida da criação sonhada por Ñamandú. Além disso, nós nos reidentificamos com nossa escolha comum de seguir esse seu caminho.

— Paí Católico. Obrigado, paí, por este diálogo. Apesar de 500 anos de opressão, incompreensão e marginalização, vocês não perderam a capacidade de sonhar em grande. Apesar de todos os despejos de suas terras, vocês não perderam o sonho da Terra sem Mal. Até o próprio nome de nossa “igreja” significa “assembleia” (ecclesia)!

Nossa igreja levou cinco séculos para ouvi-los e conhecer sua riqueza!  Reconhecemos que nosso sonho de uma igreja sinodal tem longas raízes nesta terra guarani.

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Notas

[1] Paí é um título guarani para o pai de uma família extensa, os sacerdotes guaranis e o chefe de uma comunidade. Desde a conquista, também foi aplicado a padres católicos não-indígenas.

[2] No Paraguai, encontramos o núcleo do modo de ser, pensar e viver guarani nos povos avá, aché, mbyá, paí tavytera, ñandeva e áva (guaranis ocidentais).

[3] O paí Meliá fala de uma Tekologia Guarani.

[4] Cf. Papa Francisco. Discurso a los estudiantes de la red nacional de las escuelas para la paz, 19 de abril de 2024.


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